O LEGADO DE ANÍSIO
Maria José Rocha Lima
Falar sobre Anísio Teixeira significa
reconstruir toda a trajetória da luta em defesa da escola pública, laica,
gratuita e de qualidade no Brasil. Atual, ele inspira, orienta e ilumina os
caminhos dos que só acreditam na democracia com um povo educado e preparado
para governar e controlar quem governa.
Anísio, a rima certa entre teoria e
prática, o desejo de transformar a realidade, dizia em 1947, em pronunciamento
na Assembleia Legislativa da Bahia: "Não venho aqui sem certo
constrangimento falar sobre educação, porque sobre isto quase tudo já se
discutiu mas nunca se fez tão pouco num setor. Por isso, os educadores foram
acometidos de um pudor pela palavra e um desespero mudo pela ação".
Quarenta e quatro anos depois,
poderíamos repetir o pronunciamento de Anísio e estaríamos atualizados.
Destacamos ainda, nesse início, o apelo
contido no Manifesto dos Pioneiros, em 1932: "Só existirá uma democracia
no Brasil no dia em que se montar a máquina que prepara as democracias. Essa
máquina é a escola pública. Mas não a escola pública sem prédios, sem asseio,
sem higiene e sem mestres devidamente preparados, e, por conseguinte, sem
eficiência e sem resultados. E sim a escola pública rica e eficiente, destinada
a preparar o brasileiro para vencer e servir com eficiência dentro do
país".
O alerta dos Pioneiros - Anísio,
Paschoal Lemme, Fernando de Azevedo, entre outros - não foi ouvido pelo poder
público e pelas elites brasileiras. O resultado é que, 59 anos depois, o país é
considerado a "República da Ignorância": 8,5 milhões de crianças não
ingressam no sistema educacional, há no Brasil 60 milhões de
pessoas analfabetas ou semi-analfabetas, crianças e jovens saem do 1º grau
sem saber ler e escrever corretamente.
Na Bahia, o quadro, estarrecedor, não
foge à regra: 50% de analfabetos entre a população de 14 anos e mais; na zona
rural 72% dos habitantes nunca freqüentaram escola ou não completaram sequer um
ano de estudo. Em 1991, o déficit de atendimento no 1º grau é de
822.598 crianças. A previsão para o ano 2.000 é de cerca de 1 milhão fora do
ensino de 1º grau, caso sejam mantidas as condições atuais da
escola pública.
A Bahia lidera os índices de evasão e
repetência: em 1980, havia 730.201 alunos matriculados na 1ª série. Em 1987, o
número de matriculados na 8ª série era de 79.777. Portanto, só 10% conseguiram
escapar do naufrágio. Ironicamente, a terra de Anísio, que defendia a escola
integral, implantou o absurdo pedagógico do rodízio escolar - aula dia sim, dia
não, e até uma só vez por mês - na rede pública!
O quadro dramático, aliado à realização
de greves prolongadas e de conquistas modestas, além dos desgastes a que são
submetidos os profissionais da área de educação junto aos pais de alunos, impõe
às entidades sindicais a retomada do movimento de defesa da escola pública.
Inspirados nas lutas iniciadas pelos
Pioneiros da Educação, surgem na Bahia, sob o comando da APLB-Sindicato; os
movimentos SOS Educação, em 1985; Chega da
Angústia na Educação, em 1986; Educação na Bahia - Caos/Quem
Precisa Sabe que não Mudou, em 1987; Movimento em Defesa da
Escola Pública Anísio Teixeira,em 1989; e, em 1990, instala-se o Tribunal
Anísio Teixeira, com o objetivo de julgar os crimes cometidos contra a educação
na Bahia.
Merecem destaque as discussões em torno
da Assembléia Nacional Constituinte, em 1988, e da Constituinte baiana, em
1989. Há uma certa reprodução do debate travado na Constituinte de 1946 entre
os educadores da Escola Nova - publicistas -, entre eles Anísio, e os
privatistas, representados principalmente pela Igreja Católica.
As teses principais em confronto nas
Constituintes federal e estadual foram privatização do ensino x escola pública
e gratuita; verbas públicas para escolas particulares x recursos públicos
exclusivamente para escolas públicas; sistema único x vários sistemas; ensino
laico x ensino religioso; e manutenção da dicotomia teoria e prática x
articulação entre educação e trabalho.
As nossas discussões referenciaram-se
em Anísio. Após 59 anos do lançamento do Manifesto dos Pioneiros, seu
pensamento encontra-se atual: "A gratuidade, extensiva a todas as
instituições oficiais de educação, é um princípio igualitário que torna a
educação, em qualquer de seus graus, acessível não a uma minoria, por um
privilégio econômico, mas a todos os cidadãos que tenham vontade e estejam em
condições de recebê-la".
Dizia Anísio Teixeira que o ensino
obrigatório dever-se-ia "estender progressivamente até uma idade
conciliável com o trabalho produtor, isto é, até aos 18 anos", porque a
obrigatoriedade do ensino é "mais necessária ainda na sociedade moderna em
que o industrialismo e o desejo da exploração humana sacrificam e violentam a
criança e o jovem, cuja formação é freqüentemente impedida ou mutilada pela
ignorância dos pais ou responsáveis e pelas contingências econômicas".
As reflexões de Anísio enriqueceram as
discussões acerca da jornada escolar. "Estendido o tempo da escola
primária pelo dia letivo completo e pelos seis anos mínimos de estudos,
teríamos a possibilidade de reorganizá-la para a educação de todos os alunos e
não apenas dos poucos selecionados".
A preocupação de Anísio responde às
necessidades atuais da educação brasileira. Senão, vejamos: os filhos dos ricos
têm um turno na escola e, noutro turno, dispõem de banca e aulas de dança,
línguas e esportes, além de livros, revistas e vídeos; os filhos dos
trabalhadores contam apenas com minguadas três horas e meia de aula e no outro
turno, como observava Anísio, "desaprendem o que aprenderam no turno
anterior" - porque ficam soltos nas ruas.
Na última Constituinte Nacional, a
discussão sobre orçamentos teve, também, a marca do grande educador baiano:
"Essa nova escola pública - menina dos olhos de todas as verdadeiras
democracias - não poderá existir no Brasil, se não mudarmos a nossa orientação
a respeito dos orçamentos do ensino público". E acrescenta mais:
"Precisamos (...) constituir fundos para a instrução pública, que estejam
não só ao abrigo das contingências orçamentárias normais, como também permitam
acréscimos sucessivos, independentemente das oscilações de critério político de
nossos administradores".
Quanto à articulação teoria e prática,
há, na obra de Anísio, esforço de aproximação entre educação e realidade
(trabalho). "A escola primária deverá, assim, organizar-se para dar ao
aluno (...) uma educação ambiciosa, integrada e integradora. Para tanto,
precisa, primeiro, de tempo; tempo para se fazer uma escola de formação de
hábitos (e não de adestramento para passar em exames) e de hábitos de vida, de
comportamento, de trabalho e de julgamento moral e intelectual. A escola se
organizará como local de atividades adequadas às idades, dentro de três setores
que se conjugarão entre si, mutuamente, complementares e integrados: o do jogo,
recreação e educação social e física; o do trabalho, em formas adequadas à
idade; e o do estudo, em atividades de classe propriamente ditas".
Por último, os estudos da obra de
Anísio Teixeira nos remeteram à discussão sobre a formação de professores:
"Deveríamos elevar as escolas normais à categoria profissional (...) Não
direi para torná-las, de chofre, de nível superior, mas para acentuar-lhes o
espírito de formação nitidamente profissional".
Ele contribuiu para as discussões sobre
critério, composição e função do Conselho Estadual de educação, no caso da
Bahia em 1947, revelando um esforço de fazer com que este órgão colegiado
tivesse caráter suprapartidário, aliado ao objetivo de democratizar de fato, a
gestão da educação, retirando do Secretário de Educação e Cultura o poder
absoluto de definição das políticas e de sua execução, dividindo as atribuições
do titular da Pasta com os conselheiros.
O legado de Anísio Teixeira para a
geração atual e as gerações futuras é de que "só pela escola se pode
construir a democracia" e de que, "dada a absoluta penúria da escola
pública, democracia é ainda uma palavra vã, usada para justificar a farsa
triste de um sufrágio universal irrisório". (grifo nosso)
Anísio vive!